amores expressos, blog da Adriana

sábado, 30 de junho de 2007

Saint-Merry

Num canto do Beaubourg, quase esquecida, tapada por uma tela que indica estar passando por reformas, está Saint-Merry, a igreja gótica do século XVI, erguida sobre uma precedente, do século XIII, que por sua vez substituiu uma capela do século IX. Saint-Merry tem toques do gótico flamejante inglês. Muita coisa ali foi destruída na época da Revolução, quando a igreja virou depósito de salitre. Em Saint-Merry mora um órgão de 350 anos de idade, que é um dos mais importantes de Paris e tem sido tocado com parcimônia, porque precisa de reformas urgentes ele também.

Num canto do Beaubourg, no meio de uma tarde de sábado, com multidões corre-correndo lá fora, um recital de órgão acontece em Saint-Merry. É algo raro. Um recital gratuito, embora aceitem-se doações para a reforma do órgão.

Num canto do Beaubourg, uma senhora empertigada e vivaz, chamada Michèle Guyard, senta-se ao intrumento onde já tocou Saint-Saens, quase perdida atrás da estrutura imensa. Quem está na igreja só a vê porque uma câmera projeta sua imagem numa tela.

Num canto do Beaubourg, Michèle Guyard toca uma suíte de danças de um compositor do século XX, Jehan Alain, que morreu em 1940 - aos 29 anos de idade. Há veios de jazz na suíte, estilo de que Alain gostava. É genial.

Num canto do Beaubourg, o órgão de Saint-Merry altera timbres e dinâmicas e seu som poderoso termina num acorde seco, moderno.

Num canto do Beaubourg, enquanto lá fora - cafés, cervejas na pressão.



arte sobre imagem do Hôtel de Ville, do projeto Jardins Demain

O dia clareando devagar. O apartamento respirando com sono. Um abajur aceso. Um carro passando lá embaixo, numa rua próxima. Le ciel est grand, diz o cartão. A saladeira vazia no chão, perto do sofá. Um pote com caroços de cerejas e um copo também vazio, ficou de ontem. Madeleine Peyroux cantando, na memória, Bob Dylan (you're gonna make me lonesome when you go).

Igualdade e diferenças

"Égalité : ne transigeons pas !" Com essa palavra de ordem, 500 mil pessoas foram às ruas de Paris ontem para uma parada gay, a Marche des fiertés LGBT (lesbiennes, gaies, bi et trans), que estampou a cidade com vários arco-íris e balões coloridos. O encontro festivo foi também reivindicativo, dominado este ano por duas promessas de campanha do Sarkozy: a do casamento civil e a da criação de um estatuto para o padrasto ou madrasta em famílias homoparentais.
imagem colhida no Marais: o cartaz critica o programa de saúde do Sarkozy e diz: nós não sobreviveremos - e você também não.
*

O jeito blasé do parisiense é uma doença contagiosa. É preciso um cuidado imenso, ou daqui a pouco você já está achando que deve deixar mesmo um pouco de comida no prato - não importa a fome que se passe noutros cantos do mundo.
A esse respeito, lembro-me do que escreveu Roland Barthes em O império dos signos sobre a relação dos japoneses com a comida, comparada à dos franceses.
Um francês está sempre agindo como se não sentisse fome. Cena clássica é a da parisiense magra, elegante e fumante no café, pela manhã, puxando pedacinhos preguiçosos do croissant, como se comer fosse uma obrigação aborrecida. Disse-me um parisiense, no ano passado, que isso de comer pão nas refeições é desprezível. Você nunca deve demonstrar que sente fome, mesmo que sinta.
Já os japoneses, como observou Barthes, tratam a comida com reverência e não se importam em demonstrá-lo. Mas é uma atitude comedida e justa, e o aspecto visual da comida é tão importante quanto o sabor. Come-se até o fim e, se os preceitos zen-budistas forem seguidos, lava-se a tigela depois com um chazinho ou água morna e bebe-se o líquido, de modo a não desperdiçar nada.

*

Um parisiense te insulta. Você devolve o insulto. Estabeleceu-se entre vocês uma relação de cordialidade mútua. De respeito. De quase admiração.

Rivoli/Malher/amor


Ontem fiquei pensando na entrevista que o Tadeu fez comigo e na impressão de que faltou dizer uma coisa: que o mais importante, acho, não é tanto o primeiro amor da vida da gente (esse mito), mas o último. Aquele que a gente quer que seja o último.

*

Tadeu, eu e Marcela num café na esquina da rue de Rivoli com a rue Malher, já quase fechando o expediente, no já distante dia 20. O garçom fez a foto. O Tadeu me mandou.

sexta-feira, 29 de junho de 2007

A quatro mãos e quatro pedais

Castelo de Saumur, construído no século XIV pelos duques de Anjou, nas margens do rio Loire.
Escrevemos o texto abaixo após reflexões a bordo de um espumante.
Entre parênteses.
Os americanos não entendem por que os europeus estão diminuindo a carga horária de trabalho e ainda assim conseguindo ter uma produtividade maior do que a dos profissionais deles. Para quem vive o dia-a-dia com os americanos é fácil perceber onde está o problema. Segundo Al-Cunha, se um americano quer escrever um manual de procedimentos de Como Subir Uma Escada (esqueça Cortázar), a coisa acaba em pelo menos dez páginas descrevendo passo a passo o processo, desde o momento em que a idéia de subir a escada é concebida até o momento de colocá-la em prática (incluindo análise de riscos e estudos de viabilidade), de forma que qualquer imbecil saiba o que fazer nessa situação.
Isso, levado para as grandes corporações, significa investimentos pesados na elaboração desses procedimentos, de modo que a qualidade tenha um padrão mínimo à prova do percentual de imbecis que haja na corporação.
Enquanto os europeus investem em ter menos imbecis, os americanos investem maciçamente em tornar suas corporações à prova de imbecis.
Isso tudo foi inspirado pelo passeio de bicicleta de sete horas de duração pelo Vale do Loire, trecho entre Saumur e Montsoreau.
Quando nos informamos no bureau de tourisme de Saumur sobre o percurso, nos disseram para seguir as setas verdes no chão, demarcando as ciclovias. Começamos fazendo isso, como se fosse um manual norte-americano de subir escada. Isso até o momento em que as setas repentinamente desapareceram do chão.
Neste caso, depois de seguir pelos vinhedos de estrada de terra por uns 30 minutos (com bicicletas apropriadas para asfalto), tivemos que usar o nosso senso de direção e poder de dedução para começar a enteder que, por ali, mais ou menos já equivalia a cem por cento. Voltamos. Seguimos por outro canto. Voltamos. Continuamos por acolá. Voltamos. E, com um pouquinho de bom senso e um bocadinho de sorte, achamos o caminho certo.
No fim, tudo bem, tudo ótimo, é bom comentar essas coisas depois que elas acontecem. Terminamos o percurso de 14 quilômetros apesar desses desvios, de ladeiras subidas em duplicata etc, e voltamos numa boa, margeando o rio.

Ainda sobre os americanos lá de cima, para concluir: eles criaram essa história do "80-20", que significa que você deve investir em 20% das questões que resolvam 80% dos seus problemas. Na prática, a maior parte do mundo adotou esse método – mas os próprios americanos não conseguem ser bem sucedidos nele.
O Loire sinalizou um percentual significativo do caminho pra gente. O resto foi aventura. Numa boa. Heróicas as velôs, heróicas as nossas pernas, e o resto - festa para os olhos.
(Por Paulo Al-Cunha, vulgo “Gurevitz” (também conhecido como “Gureba” nos becos do Rio de Janeiro), e Adriana Lisboa. Num break de Paris por dois dias, em busca da Idade Média.)
*
Inspirado pelo Castelo de Montsoreau, que hoje abriga entre suas paredes uma exposição super high-tech, muito bacana mesmo, Alexandre Dumas escreveu La dame de Monsoreau (comendo o t).
Ao longo do verão, Jacques Le Goff, o grande medievalista, vai dar uma série de palestras na Abadia de Fontevrau, nessa região, sobre seu novo livro, Héros et mérveilles du Moyen Âge.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Paris-grafitti



imagine que você morre (no asfalto da rue Daguerre)


"A 'política' deles é a arte de impedir que as pessoas se metam ativamente naquilo que lhes diz respeito.
A política começa na rua."

(numa faixa de pedestres)

Marais végé
















Depois de um domingo de caminhadas de dia inteiro, que veio depois de um sábado de caminhadas de dia inteiro, arriamos no Le Potager du Marais, um "café restaurant bio végétarien" na rue Rambuteau. Mesinhas coladas formado uma única e comprida mesa, com talvez 20 lugares. Se você se sentar encostado na parede e quiser sair precisa arrastar sua mesinha para a frente. Gostoso à beça. Mas a segunda experiência que tive na vida com vinho orgânico (a primeira foi no vegetariano da Dias Ferreira, no Leblon) foi bem ruinzinha. Melhor o vinho inorgânico mesmo.

O quartier gay do Marais é super acolhedor, com as bandeirolas de arco-íris e as lojas vendendo roupas de látex e cuecas hiper fashion-kitsch. Pertinho do quartier judaico, e do Musée d'Art e d'Histoire du Judaïsme, onde está rolando a exposição Rembrandt et la Nouvelle Jérusalem - Juifs et Chrétiens à Amsterdam au Siècle d'Or, só até o fim do mês. Está no topo da lista.

Cota normal de mau humor e de bom humor parisiense. Os garçons e garçonetes dos cafés parece que são sempre o que há de pior e de melhor. Pertinho de casa, onde o Tadeu gravou a entrevista comigo para o documentário, eles foram super e já me cumprimentam quando passo lá em frente. Já na Dame Tartine, no Beaubourg, diante da Place Igor Stravinsky (com as esculturas da Niki de St Phalle que eu adoro desde que vi pela primeira vez, há exatos 19 anos), oh-la-la. Tudo porque eu comecei pedindo um vinho rosé por engano, em vez do rouge, e quis trocar. Quem mandou.

sábado, 23 de junho de 2007

Say only -

Centre Pompidou: Annette Messager. Beckett. Philippe Mayaux. E "Airs de Paris", começando por Marcel Duchamp.
Depois do Beto de Londres, o Beto de Milão, que veio trazendo "l'autentico gianduiotto di Torino."
Annette Messager




Samuel Beckett
"The void: how try say? How try fail? No try no fail. Say only -"
(Worstward Ho)

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Don't let me down


o anel que tu me deste / era de vidro blindex (Bith)


Mala como livro e livro como bagagem. Porque a vida é algo que se leva às costas, com custo, ou sobre as mãos, com delicadeza. (Ondjaki)



Joca e Tadeu no pub Mayflower


Pensávamos que a Fête de la Musique ia virar a noite. A última coisa que vimos dela foi um bloco de samba passando pela rue Mouffetard, e atrás dele só não ia quem já tinha morrido, e sabe-se lá qual os passos que as pessoas aqui atribuem ao samba, valia qualquer coisa desde que fosse divertido. O baticum empolgou mais que todas as bandas cover dos Beatles, do que os caras tocando Hendrix na nossa rua. Se bem que estava bacana o grupo perto da estação Cardinal Lemoine tocando Don’t let me down.

Encontramos o Joca Terron e a Bel, mulher dele (voltando do Cairo), o Tadeu Jungle e a Marcela, amiga e ex-assistente dele que mora em Londres, num pub perto da Mouffetard, onde havia várias placas de carros dos EUA (!) decorando a parede. Inclusive do Colorado e do Novo México. Eu me senti em casa. Lembrei do carro do Paulo que dirijo no meio de muita neve, visibilidade zero, 4x4 e peloamordedeustomacuidado, -22 graus lá fora. Mas essa é uma outra história.

O Joca e a Bel contaram causos de humor negro do Cairo. O Joca me desejou boa sorte pra escrever uma história de amor em Paris. A questão: evitar o lugar-comum ou assumi-lo, fazer um pacto riobaldiano? Le diable dans la rue.

Bebemos. Stella Artois e Guiness. Voltamos a pé desde lá até nossa casa no 14º arrondissement, um trajeto imenso, o Boulevard Arago inteiro desde a Avenue des Gobelins até a Place Denfert-Rochereau. No caminho um rapaz bêbado e feliz passa por nós: “Bonsoir, monsieur-dame. Je vou embrasse très fort.” (“Boa noite, meu senhor e minha senhora, um abraço muito apertado.”)

No caminho, Tadeu angariava a atenção das multidões com a câmera. Télévision? Os franceses perguntavam. Télévision du Brésil, o Tadeu dizia, para delírio geral, e sempre algum chovedor-no-molhado lembrava de Zizou e... (Fiche moi la paix, não me encham o saco, mesmo ele sendo o jogador mais bonito daquela copa. Certo: há controvérsias.)

O Mikael, filho de 9 anos do Paulo e obcecado pela Tour Eiffel, pediu a ele que tirasse uma foto. Então tá. Hoje fomos fazer programa de turista. Mas chovia tanto, chovia tanto, meu guarda-chuva laranja comprado em Teresópolis não dava conta de nós dois, e nada de foto da torre, fomos parar no Centre Culturel du Japon na Place Kyoto, compramos um incenso de lótus depois de o segurança nos revistar para entramos no prédio e na lojinha.

Gabriel, meu filho, me mandou e-mail: “Oi, meu pai me deu um remedio e hoje dia 19 não tive febre mas ontem eu tive mas foi febre baixa, eu tenho que tomar o remedio de 12 em 12 horas, eu ja estou melhor da gripe. Vi o sherek 3 no cinema com a Julia e a Ilana.”

quinta-feira, 21 de junho de 2007

Fête de la Musique

("a arte não é um negócio sério. A arte é um negócio sério. A arte não é um negócio. A arte é um negócio. A arte não é. A arte nasce.")


Ontem, o locutor do rádio citou Boris Vian: "La langue est un organe sexuel dont on se sert occasionnellement pour parler." ("A língua é um órgão sexual de que ocasionalmente nos servimos para falar.")

Ontem, Chico Buarque sentado num café da Île St Louis, lendo o Le Monde.

Uma enormidade de turistas brasileiros em Paris. Fazendo sempre uma enormidade de compras.

Hoje, o Musée Picasso, no Marais, de manhã. E a cidade já começando as comemorações da vigésima-sexta Fête de la Musique, que viram a noite (o metrô está com uma tarifa única e vai funcionar 24 horas). A festa ocorre anualmente no dia 21 de junho, solstício de verão.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Ça se fête!


(Paulo fez a foto. No Musée d'Orsay.)

terça-feira, 19 de junho de 2007


Café d'Enfer

Na chegada à rue Daguerre, em busca do apartamento, passamos pela feira livre. Vendedores gritando morangos, cerejas. Queijos. Carnes que não comemos - somos vegetarianos num país em que tradicionalmente se devoram bifes de cavalo, escargots, ostras, fígado de ganso, coelhos, rãs, oursin, gigot d’agneau e afins.


Venta. Ameaça chover. Um homem me cumprimenta, de passagem pela feira, vendo as malas: bienvenue en France.
Vous aussi, mon ami: você também. O rosto dele é o de um imigrante mais ou menos assimilado pela cidade.


O livro que estou lendo se chama We’ll Always Have Paris: Sex and Love in the City of Light, do crítico de cinema John Baxter. Leio: “All Paris stories are to some extent stories of love – love requited or unrequited, knowing or innocent, spiritual, intellectual, carnal, doomed” (“todas as histórias de Paris são, até certo ponto, histórias de amor – amor correspondido ou não correspondido, experiente ou inocente, espiritual, carnal, predestinado”).


Os morangos, as cerejas, flores de lavanda em potes na calçada. O Café d’enfer (“Café do inferno”) fazendo trocadilho com o Boulevard Denfert, nas proximidades. As malas rolando pela rua de pedestres.

Na primeira vez que cheguei em Paris tinha 18 anos e vim para morar. Acabei me mudando para Avignon, fui cantar MPB num restaurante chamado Tudo Bem – ganhava gorjetas extra com “Essa moça tá diferente”, do Chico, tema de um comercial da Orangina (espécie de Fanta laranja daqui). Vim de novo a Paris quase dez anos depois. E a última vez foi no ano passado, fiquei quinze dias hospedada com o amigo de origem argelina que estuda filosofia e mora de favor num conjunto de chambres de bonne num endereço chique (as chambres de bonne são minúsculos quartos reservados antigamente à criadagem, com um banheiro comum e no último andar dos prédios, o que pode equivaler a vários lances de escada).

Quando estive aqui no ano passado topei com o João Paulo Cuenca na rua. Ele estava barbudo, quase não reconheci. Estávamos no meio de um monte de pedestres no Boulevard Saint-Michel. Parece o Cuenca, eu pensei. Aí escutei: Adriana?
Bienvenue en France.
Vous aussi, mon ami. Todos mais ou menos assimilados pela cidade.

Chove fino, uma chuva inocente. Precisamos comprar adaptadores para as tomadas francesas.